Kirk Douglas, o último herói da era de ouro
- Luciano Bastos, DP
- Feb 18, 2020
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Cheguei a pensar que os céus tinham esquecido Kirk Douglas aqui neste plano, mas acabou que ele foi levado para aquela outra dimensão tão misteriosa para todos nós. O último grande herói da era de ouro de Hollywood nos deixou com 103 anos de idade. Atuou para nosso deleite em nada menos que 78 longas, muitos dos quais memoráveis. Esse americano descendente de russos, além de ator foi também um produtor muito atuante da história do cinema. Suas parcerias com Dalton Trumbo e outras lendas da gramática cinematográfica foram significativos marcos na indústria ao romper com preconceitos e enfrentar desafios que a maioria preferia evitar.
Revi esta semana dois clássicos estrelados por Kirk, ambos de Stanley Kubrick: Glória feita de sangue e Spartacus, filmes que nos fazem refletir sobre a humanidade. O primeiro, ambientado na sangrenta primeira guerra mundial, mostra o descaramento de uma elite militar numa manobra execrável de criar uma trinca de bodes expiatórios com o intuito de camuflar negligência numa operação de guerra.
Douglas advoga os três acusados, mesmo percebendo que suas chances de vitória são mínimas. Já Spartacus é um clássico que mostra os horrores da escravidão imposta pelo império Romano, e a épica e extraordinária rebelião de milhares deles que, conduzidos por um líder, passam a ter uma razão para continuarem a viver com a dignidade que lhes era negada no terror dos cativeiros. O filme, dirigido magistralmente por Kubrick, e que apesar dos seus 60 anos resistiu bem ao tempo, traz um dos elencos mais extraordinários de toda a história do cinema. Além de Douglas, temos Laurence Oliver, Peter Ustinov, Jean Simmons, Charles Laughton, John Gavin, John Ireland e Herbert Lom.
Kirk Douglas fez muito de tudo no cinema. Foi um Ulisses vigoroso da Odisséia de Homero, foi viking, foi um inesquecível Doc Holiday em Sem lei e sem alma, foi o boxeador determinado em O Campeão de 1949, papel que anos mais tarde ajudaria a consagrar Jon Voight. Foi um jornalista inescrupuloso em A montanha dos sete abutres, que usa a desgraça de um homem preso numa mina rompida para se tornar famoso, corrompendo autoridades que pudessem atrasar o resgate o quanto possível.
Em Assim estava escrito, de Vincent Minelli, ele mergulha no complexo mundo do cinema com suas vaidades, traições e a obsessiva ganancia dos produtores. Junto com Sunset Boulevard (Crepúsculo dos deuses) podem ser considerados os mais importantes mergulhos metalinguísticos que conhecemos na sétima arte. Aqui o famoso rosto com um buraco no queixo vive um produtor ganancioso, muito provavelmente inspirado no lendário Darryl F. Zanuck.
Da mesma forma que fazia heróis (Spartacus, Glória feita de sangue, Ulysses), saia-se muito bem nos papéis que revelassem faces mais cruéis e menos éticas (Assim estava escrito, A montanha… e A cidade dos desiludidos), algo que muitos dos seus colegas contemporâneos evitavam com receio de comprometerem suas popularidades.
Viveu cerca de 20 anos a mais do que a média de seus colegas mais ilustres; Burt Lancaster viveu 80 anos, Cary Grant 82, Charlton Heston 84, Gregory Peck 87, Laurence Oliver 82.
O último filme de Douglas (Illusion) foi em 2004, já com seus 87 anos, e curiosamente interpreta um cineasta no leito de morte relembrando um pouco a sua vida e pensando no filho que mal conheceu.
Depois desse filme em que ele morre na ficção ainda ficaria por aqui por mais dezesseis anos. No entanto serve como uma metáfora onde alguém que tanto trabalhou recolhe-se à vida privada.