Escritores negros da periferia resistem e contam suas histórias
- Jefferson Alves | Aluno - AgênciaUVA
- Nov 20, 2017
- 7 min read

O enredo de 2017 da escola de samba Renascer de Jacarepaguá contou a história da escritora Carolina Maria de Jesus. Mulher, negra e favelada, catava papéis para sustentar a família. Moradora do Canindé, periferia de São Paulo, escrevia contos, crônicas, romances e poemas nos cadernos encontrados pelas ruas. Carolina não imaginava que seria descoberta por um jornalista, em 1958, nem que seriam publicados aqueles textos escritos em folhas descartadas. Muito menos vislumbrou que seus livros, como o “Quarto do Despejo”, alcançariam projeção internacional. O conteúdo dessas obras é inspirado em uma vida apartada.
A vivência de Carolina faz com que outros autores negros artistas se identifiquem com ela. Eles sofrem com o cotidiano de uma marginalização histórica. Esnobadas por grandes editoras e elites socioeconômicas, suas produções se configuram como uma alternativa em relação aos escritores privilegiados e ao mercado editorial de grande circulação. As obras de pessoas de fora do centro – no sentido social, econômico ou territorial – foram batizadas de literatura periférica ou marginal. As mídias sociais auxiliaram politicamente os artistas negros do gênero, que hoje têm mais voz e não querem a elite branca relatando por eles as suas histórias na favela.

Os artistas da periferia desejam criar poemas com a propriedade que possuem. Como faz Louise Queiroz, 24 anos, moradora da periferia de Salvador. Para a poetisa, é importante definir de onde vem o escritor, o que defende e quem representa. Sobre o quanto de sua vida está presente em suas obras, apropria-se das palavras da escritora Conceição Evaristo: “O que faço é ‘escrevivência’ plasmada em versos”. A vivência de Louise como mulher negra lésbica está tecida em sua escrita, e o que vê ou ouve ecoa internamente e resulta em poema.
Os versos surgem quando menos ela espera. Incomodam quando, no meio da noite, não a deixam voltar a dormir. Rolar na cama de um lado para o outro, à procura de uma posição que relaxe o corpo, não elimina a ansiedade mental para pôr nos papéis o que amarrotou os lençóis. “Mas isso não anula o fato de que escrever poesia é sim um lutar com palavras. Não é só derramar os versos no papel e pronto. É trabalho, é cuidado, é busca”, exorta Louise, que já teve poemas publicados na coletânea poética "Enegrescência" e nos "Cadernos Negros Volume 39 – Poemas Afro-Brasileiros".
A série antológica de livros é composta por contos e poemas de autores negros de todo o Brasil. A editoração e o lançamento são realizados de modo independente pelo coletivo de escritores Quilombhoje. Os participantes de cada volume anual arcam com uma parte dos custos, enquanto a venda das obras dá conta da outra parcela. O preço para venda do livro é acessível: a partir de R$ 15. Com tiragem de mil exemplares, as mais recentes edições têm se esgotado no prazo de um ano.
Sobre o processo seletivo para entrar para os "Cadernos Negros", os escritores enviam contos e poemas, sob um pseudônimo, e recebem orientação de críticos e opiniões de leitores. A partir disso, os artistas podem trabalhar os textos antes que sejam publicados. Todo volume é lançado em um grande evento realizado no fim do ano. Os lançamentos têm como diferencial a dança, a música e outras performances artísticas.

Quem também teve escritos no último volume da antologia foi Bruno Gabiru, jovem negro de 27 anos da periferia de São Paulo. O interesse dele por leitura e escrita surgiu quando teve uma banda de hardcore-thrash, logo depois da adolescência. Como sua tarefa era compor, precisava ampliar o repertório. Mais tarde, ele foi ilustrador e contista de um site que tinha a proposta de publicar literatura fantástica. Entretanto, Solano Trindade foi quem começou a amadurecer seu estilo, e o Volume 13 dos Cadernos a solidificá-lo.
As referências de Gabiru, portanto, são artistas e intelectuais negros. Ele sabe a importância de conhecer aqueles que abriram caminho para conquistas sociais que o beneficiam. A partir disso, reconhece sua negritude e repensa sua masculinidade. “Ao me afirmar como artista negro, penso numa reconstrução de mim. Vejo a escrita como forma de cura e mudança que exige tempo daquele que lê e daquele que escreve”. Contudo, ele não aceita o rótulo de periférico. Considerar-se artista negro é o suficiente. "Afinal, se eu ascender socialmente, deixarei de ser periférico, mas não de ser negro."
Esses termos ou rótulos são debatidos com frequência. A literatura marginal das décadas de 1960 e 1970 tinha um conteúdo de resistência tanto ao regime militar quanto ao mercado editorial burguês. Entretanto, não vinha da favela. O que se conhece hoje como literatura periférica foi alcunhada por Ferréz, autor de “Capão Pecado”. O gênero define vozes de pessoas à margem social, econômica ou territorial. Há uma parcela de escritores e estudiosos negros que recusam essa denominação, devido a estigmas ou por defenderem que vem de quem tem poder.

É o que pensa a escritora e atriz Cristiane Sobral, mestre em teatro pela Universidade de Brasília (UnB) e ganhadora do Prêmio FAC (Fundo de Apoio à Cultura) 2017 Culturas Afro-Brasileiras. “Queremos existir além dos estereótipos. Para entender as margens é preciso observar o movimento que oprime desde os grandes centros, na lógica capitalista”. Ela crê que a indústria cultural não abraça os autores negros. “Lutamos para existir como escritores em um país onde quem mais publica são os homens, brancos, de elite”, desabafa a autora de “Terra Negra”.
O racismo, de fato, é institucionalizado. Presente em todas as esferas e setores da sociedade. Na indústria editorial não seria diferente. O negro hoje está produzindo muito conteúdo reflexivo sobre seu papel, problematizando nuances do preconceito que foram veladas ou naturalizadas. Para as elites, o espaço dele é na subalternidade e o seu tempo apenas dedicado a alimentar dons artísticos. Todavia, o negro pensa e sabe falar. Sobretudo quer escrever o que percebe, questiona e vive.
Essas discussões estão presentes em textos publicados por editoras independentes. O escritor e pesquisador Márcio Barbosa acredita que o Quilombhoje, do qual é um dos coordenadores, e outros grupos e editoras de conteúdo afro são eficientes meios de propagar sentimentos originados pela vivência e ideias empoderadoras. “Acho que não é pretensão dizer que o movimento de literatura periférica foi precedido pelos 'Cadernos Negros', que mostraram, por um lado, que é possível ser universal falando a partir de ‘seu lugar’”.

É o que faz o poeta Bruno Black. A poesia dele pode contar o cotidiano vulnerável da favela, como também é provável que não fale especificamente sobre isso. “Ao realizar meu processo, olho para mim”. Ele faz isso há 18 anos. Carioca, morador da favela do Batan, em Realengo, aos 36 anos, se deu conta de que sua atuação como artista foi além dos versos. Depois de um ano vivendo como poeta, percebeu que era um “produtor cultural”. O autor de “Poético” é um dos idealizadores do coletivo Descabelados, que nasceu na Zona Oeste do Rio. Organiza saraus, oficinas e programas de rádio.
O público beneficiado pelos trabalhos do poeta é diversificado. Conquista pessoas que não sabe de onde vêm. Ele sabe que no Rio de Janeiro não vivem as pessoas que mais compram seus livros. De fato, em um evento como a 18ª Bienal Internacional do Livro Rio, os fluminenses não seriam os únicos a obter os escritos dele. O autor lançou no penúltimo dia de evento a obra “Perdas e Ganhos”. “Foi a melhor bienal da minha vida. As pessoas comprovaram o quanto respeitam e gostam da minha arte. Pararam a rua em que eu estava no evento. Isso foi um marco”, relata emocionado.
Black ainda percorre os bairros de sua cidade, sobretudo os da Zona Oeste, que acredita ser um celeiro de dons. As mensagens que recebe dos leitores por meio das redes sociais são calorosas. Inclusive, ele é muito ativo no Facebook e no Instagram, divulgando o que semeia em eventos ou em aulas dadas nas escolas. “Eu ando mais impactado do que impactando pessoas”, revela o escritor.

A Zona Oeste é também um celeiro de fãs desse autor, já que Fabiano Cunha, 26 anos, considera Bruno Black um de seus autores periféricos prediletos. Para o bombeiro civil, a escrita é familiar e a abordagem da realidade mais direta, se comparadas a publicações de grandes editoras. “A maioria dos escritores periféricos tende a produzir sua literatura como um grito de arte que, não cabendo dentro de cada um deles, passa para o papel de uma forma mais brusca e rudimentar”.
O grito artístico citado por Fabiano pode se materializar em performances cênicas e musicais. Leituras bem interpretativas de poesia estão presentes nos saraus de literatura negra e em outros eventos ligados ao gênero. Alguns textos são cantados para uma audiência sedenta por arte representativa. São vidas faladas, encenadas e cantadas. A carga literária periférica das músicas, sobretudo do rap, é identificada nos versos construídos pela percepção das vivências.
O b-boy WP (Wanderson Pereira), 24 anos, reafirma essa ideia. Ele é fã dos poetas marginais influenciados pela cultura hip hop e faz também rap. O jovem explica que este gênero musical aqui no Brasil é “realidade através de palavras”. WP participa de encontros com temática periférica desde 2012 e acompanha amigos poetas marginais que expõem. Assim, não se interessa por livros de grande circulação. “Cada escritor ou MC tem meio que um ‘ritual’ para manter sua linha de trabalho. Como que de certa forma, ao fugir do tradicional, venha a manter a originalidade, obtendo destaque”.
O que hoje, de fato, ajuda a evidenciar produções artísticas e temas que precisam de problematização são as mídias sociais. Os escritos negros de origem periférica têm a chance de atingir seu público. Essa maneira alternativa e independente de divulgar pode constituir um perfil de leitor por meio da identificação imediata dele com o conteúdo. Entretanto, as possibilidades vão além, segundo o doutor em letras pela PUC-Rio e autor do livro “Escritos à margem, a presença de autores de periferia na cena literária brasileira”, Paulo Roberto Tonani do Patrocínio. “A subjetividade pode ser formada a partir da leitura das obras, no contato com as questões que orientam as narrativas ou os textos poéticos”.
Portanto, é possível que as pessoas construam a identidade delas como negras ou periféricas após lerem poesias, contos, romances ou crônicas criadas por homens e mulheres pertencentes a tais grupos étnicos e sociais. Esse tipo de literatura constitui uma alternativa por não ser um gênero hegemônico ou massivo. É um estilo que carrega sentidos históricos e humanos e que até constrói um reconhecimento estético negro positivo em quem a lê. Os escritores foram postos à margem pelo sistema. A visibilidade e apelo popular são modestos se comparados aos grandes escritores. Contudo, como diz Bruno Black, “se tens um dom, seja!”.
Fotos:
1 - Carolina de Jesus e a primeira edição de Quarto de Despejos;
2 - Louise Queiroz, que tece vivências em seus escritos;
3 - Bruno Gabiru "considera suficiente se definir apenas como artista negro, não com periférico";
4 - Bruno Black assinando Perdas e Ganhos para uma leitora na Bienal do Rio; e
5 - Fabiano Cunha, que se identifica com o conteúdo da literatura periférica.