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Meu avô, minhas lembranças

  • Luís Eduardo P. Basto
  • Nov 18, 2017
  • 3 min read

Costumamos ser generosos com o passado. E isto não é injusto. É ele – ou o que dele conseguimos capturar na memória – que nos define humanos.

Mas nossa história não é uma biblioteca, com lembranças catalogadas e organizadas de acordo com o que sentimos à época em que os fatos aconteceram. O passado se assemelha mais a um grande saco, em que, jogados sem cuidado, dores, alegrias, sucessos e fracassos se misturam, formando um xarope viscoso, doce e quente. Daqueles que derramamos em cima do waffle da nossa vida quando esta precisa de sabor (o cheiro é bom, mas já viram algo tão sem gosto quanto waffle?).

O fato é que faz pouca diferença se você viveu um momento de euforia ou de grande tristeza há dez, vinte, trinta, quarenta anos. O seu suspiro ao tentar reviver o passado será igual. Porque o que realmente vale é a intensidade da emoção. O tempo apaga os traços do seu desenho e deixa apenas a fumaça das cores. Aquilo que causava medo ou angústia se transforma em uma história engraçada. Ou em uma lembrança docemente perfumada.

A reflexão do passado sem tanta diferença entre positivo e negativo surgiu naturalmente quando pensei no meu avô Lamounier. Ele está ligado à maior parte do que associo ao significado avô, uma vez meu avô Paulino morava longe e, infelizmente, tive poucos momentos com aqueles olhos duros de coração mole...

Posso não lembrar os detalhes de cada história, mas conservo perfeitamente a excitação de cada encontro com meu avô Lamounier. Na visão de uma criança, era o que de mais imprevisível eu podia imaginar. Sair com ele – só nós dois – era certeza de uma aventura, fosse um passeio pela feira livre, um jogo no Maracanã ou um simples retorno da escola.

Não haveria aqui espaço para descrever todas as situações extraordinárias que vivi com meu avô. A pose de homem sério contrastava com sua capacidade de esquecer as coisas mais básicas e com manias como ter sempre no bolso aspirinas e papel higiênico, ou não gostar de locais cheios de gente. Com ele, Maracanã era sinônimo de jogo vazio no sábado à noite.

Certa vez, minha mãe pediu inadvertidamente que ele me buscasse na escola. Meu avô chegou atrasado, trocou o meu nome com o do meu tio – o que alongou por intermináveis minutos a minha saída – e, em vez de levar o neto para casa, me informou estava atrasado para uma reunião e que precisaria fazer um pequeno desvio no caminho. Bem, não era apenas uma reunião nem um simples desvio. Chegamos em casa depois das quatro da tarde, com minha mãe à beira de um ataque de nervos, em tempos pré-celular. No meu estômago, um frugal pastel. Na minha memória, uma tarde inesquecível.

- Estava comigo. Não havia motivo para se preocupar – respondeu calmamente meu avô quando minha estressada mãe disse que era para me trazer para o almoço.

Nunca me senti desprotegido ao seu lado. Algumas vezes, ficava preocupado, como quando ele escolhia o ônibus para embarcar não pela relação entre a linha e o destino desejado, mas pelo simples fato de estar vazio. Isto fazia quase sempre que mesmo as viagens mais curtas exigissem que pegássemos dois ou três ônibus. Se ele não se confundisse e acabássemos em lugares que eu só conheceria anos mais tarde...

Testemunhei ainda incontáveis casos do seu esquecimento. Carteira, cheque, guarda-chuva, lista de compras, caminho, motivo de sairmos. Provavelmente, desejei algumas vezes que ele fosse diferente. Que eu não precisasse me sentir responsável por ele.

Mas, ao final da nossa aventura, mesmo sofrendo um pouco, eu queria ir de novo. Como quem fica rouco de gritar na montanha-russa e, ao sair do carrinho, ainda tremendo, só consegue pensar em encarar a descida mais uma vez.

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