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Jacqueline, uma história inacabada

  • Luís Eduardo P. Basto
  • Oct 19, 2017
  • 3 min read

O tempo avança e os espaços no mundo do trabalho diminuem. Não, não se trata de linguagem figurada. Simplesmente não existe lugar para acomodar meus três armários no novo leiaute do andar. Todos me olham com reprovação contida quando reclamo que minha história não cabe em apenas dois armários.

Resignado, começo a inútil tentativa de encontrar itens descartáveis do meu passado. Pastas de documentos, pilhas de fitas de VHS e disquetes, troféus, diplomas, medalhas, brindes, revistas e livros, muitos livros. Coisas esquecidas e que agora me parecem imprescindíveis. Qualquer coisa que toco me transforma em Golum, pronto a lutar até a morte pelo “meu precioso”.

Até que me deparo com algo que não deveria estar ali. Um livro que não me ativa qualquer lembrança - Luísa (quase uma história de amor), de Maria Adelaide Amaral. Com certeza não o comprei. O amarelado que tomou a parte branca da capa indica mais de dez anos, talvez vinte, trinta.

Resolvo procurar uma marcação, um bilhete, algo que me ajude a traçar a rota do livro até o meu armário. Tropeço numa dedicatória:

Uma de suas virtudes é não ser conivente com o silêncio pernicioso. Sua cumplicidade só existe nos silêncios naturais ou absolutamente profícuos.

Talvez faça parte da mágica que, paradoxalmente, consigamos revelar tudo com muito poucas palavras.

Eu te amo.

Jacqueline

Quem será Jacqueline? Não uma Jaqueline comum, mas com ‘c’, como se deixasse claro que também a dedicatória não seria banal, daquelas largadas com pressa no papel.

Em homenagem a essa Jacqueline que não conheço, esforço-me em buscar na memória uma mísera pista, talvez imaginando em poder retornar o livro ao verdadeiro destinatário daquelas palavras. Um beco sem saída neste labirinto.

Pensando bem, o destinatário não merece a dedicatória. É provável que tenha me dado o livro para se livrar daquelas palavras, esquecer. Um crime premeditado.

Mas... e se o antigo dono me entregou o livro sem atentar que estava se desfazendo de parte da sua história? E se o livro foi esquecido numa mesa, numa cadeira, chegando por caminhos mágicos ao meu armário? Se até hoje seu antigo dono perambula por sebos procurando a mensagem de Jacqueline?

Sendo impossível concluir quais seriam as razões do abandono do livro, examino mais uma vez a dedicatória. Apesar do verbo amar, não encontro paixão. Um sentimento intenso, movido a desejo, poderia até viver com silêncios profícuos, mas não falaria de virtudes nem desembocaria num fraternal Eu te amo. Um final apaixonado teria um Te amo, com ou sem o complemento demais.

A dedicatória parece descrever uma amizade de quem sofre junto, compartilha sonhos, medos e frustrações, mas não sabe se o outro está com uma conta atrasada. Uma história de quem silencia para que o outro se descubra por meio das próprias palavras. Provavelmente amigos com a mesma formação profissional, talvez até colegas de trabalho.

Pensar sobre coisas ocorridas há tanto tempo me jogam, num solavanco, para o presente. Maria Adelaide Amaral é hoje uma roteirista de sucesso, conhecida pelas minisséries da TV Globo. E Jacqueline? Será feliz? Teve filhos? Algum dia perguntou ao destinatário se ele havia gostado do livro? A intuição me conta que a vida afastou lenta e definitivamente Jacqueline do destinatário da dedicatória. A ponto de não saberem se o outro está vivo.

Todas estas dúvidas são apenas a neblina do verdadeiro big bang deste mistério, como tudo começou: o que fez Jacqueline dar o livro para o destinatário da dedicatória. Seria a escritora uma amiga comum? Teria um deles trabalhado ou assistido a peça De braços abertos, inspirada no livro, conforme indicado na capa? Seria simplesmente um presente? Ou uma brincadeira com o nome Luísa?

Desconhecer as respostas é fascinante. Toda a liberdade de tentar qualquer caminho e nenhuma responsabilidade de alcançar a verdade. Mesmo para sempre inacabada, é a história de alguém. Não posso jogar fora.

Será difícil acomodar tudo em dois armários.

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