Depois do vendaval (1952)
- Luciano Bastos, DP
- Sep 18, 2017
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Há muito tempo que Depois do Vendaval (The Quiet Man) faz parte de uma seleta galeria de filmes que podem ser revistos dezenas de vezes. Não há como conter superlativos quando se comenta um filme do mestre John Ford. Ford é um estilista que não teme misturar temperos como um grande chef faria, e não se intimida em viajar pelos mais variados gêneros cinematográficos. Embora grande parte do seu prestígio e de sua posição entre os maiores cineastas de todos os tempos deva-se ao western, Ford brilhou nos mais diversos gêneros. Dramas intensos como O delator (The informer), Como era verde o meu vale (How green was my valley) e Vinhas da ira (Grappes of wrath) são alguns dos muitos filmes destacáveis em sua extensa filmografia. Este também é o caso de Depois do Vendaval, uma deliciosa comédia romântica filmada na Irlanda de seus antepassados. É quase impossível assistir o filme realizado em 1951 sem querer pular para dentro da tela e viver na bucólica Inesfree, como se pudéssemos fazer o oposto do que acontece em A Rosa púrpura do Cairo. Ford cria uma mítica aldeia povoada pelos personagens que tanto caracterizam seus filmes e uma atmosfera de uma deliciosa tradição de costumes que vivem no imaginário de sua Irlanda querida. Ford faz com Inisfree o que Fellini faz com Rimini. Ali estão representados todos os personagens que melhor traduzem a alma de uma rica galeria humana, caricatos ou não, ingênuos demais talvez, mas magnificamente fordianos. John Wayne está em Depois do Vendaval como em dezenas de filmes de Ford. Aqui ele faz um ex-boxeador (Sean Thornton) que luta para fugir de lembranças dramáticas no ringue, onde atingiu um adversário que acabou morrendo dos ferimentos. Atormentado pela tragédia, Sean resolve abandonar tanto a América como a profissão e ir atrás de uma nostalgia juvenil em sua terra natal, a Irlanda. O mergulho autobiográfico de Ford é tão grande que o nome do personagem (Sean) é o verdadeiro nome do cineasta. Na Irlanda, Sean encontra um velho conhecido, Michaelin (criação inesquecível de Barry Fitsgerald). Michaelin é cupido, e também um tremendo fofoqueiro, bebe como um gambá e, com tudo isso, exerce uma forte influência na cidade, principalmente pelos seus conselhos recheados de filosofia. Mary Kate (Maureen O’Hara) é a ruiva que faz a mocinha difícil e calculista, irmã de um grandalhão espalhafatoso e irritado com o assédio que ela recebe do forasteiro. Outro ator fordiano de todas as horas, Ward Bond, está no papel do barulhento padre católico, cujo maior objetivo é pescar um giganteco merlin na lagoa da aldeia. Nem mesmo a eterna rivalidade entre católicos e protestantes fica sem um toque de extremo bom humor no filme. Na visita do bispo católico cuja missão é transferir o padre por não haver na aldeia número suficiente de fiéis, todos os protestantes vão às ruas saudar a chegada da autoridade religiosa para fazer número. Afinal, ali todos são amigos e todas as brigas terminam na taverna. E por falar nisso, é a formidável luta entre Danaher, o irmão de Mary Kate, (Victor MacLaglen, outro assíduo frequentador dos westerns de Ford), e Sean Thornton que ocupa uns 15 minutos no final do filme e faz com que até os moribundos levantem do leito de morte para assistir e, é claro, fazer apostas. A briga é pontuada por pequenos intervalos na taverna, onde as forças são recuperadas. Uma curiosidade: o moribundo que recusa a extrema-unção e sai correndo para a rua quando ouve o murmurinho da briga é o irmão mais velho de John Ford, Francis Ford.
Ninguém pode ficar indiferente a um filme que reúne em suas duas horas um elenco espetacular, paisagens magníficas (Ford usa lentes que criam um colorido extremamente delicado e primaveril, quase celestial, quando mostra a Irlanda na chegada de Sean), musica perfeita, personagens deliciosos, humor, romance, tudo. Certa vez comentei com um amigo que a gente recebe quilos de noticias ruins todos os dias que nos fazem duvidar que a humanidade ainda guarde alguns valores morais. Um filme como esse funciona como um bálsamo, uma utopia deliciosa para que, durante duas horas, a gente possa encontrar ânimo e inspiração para uma sociedade potencialmente feliz.