Cinema nos trilhos
- Luciano Bastos, DP
- Aug 1, 2017
- 4 min read

... E NA CATEGORIA MELHOR TREM THE OSCAR GOES TO... Desde sempre o cinema teve uma relação de paixão com o trem. São milhares, talvez dezenas de milhares de exemplos em que o trem entra como um forte componente nos filmes. Aliás, um trem chegando numa estação foi a primeira sequência que estabelecia o movimento a ser projetado como a grande novidade que viria a ser o cinema. O minúsculo curta de Lumière assustou a plateia convidada para a experiência que se sentiu ameaçada pela aproximação da locomotiva e entrou em pânico.
A General de Buster Keaton não era uma senhora que tinha progredido na carreira militar, mas sim uma locomotiva a vapor. Foi no trem, entre Nova Iorque e Washington que os pés de Bruno (Robert Walker) e Guy Haines (Farley Granger) se esbarram para dar início ao famoso mal entendido trágico em Pacto Sinistro de Hitchcock. Do mesmo Hitch, em A Dama Oculta, a protagonista desaparecia misteriosamente dentro de um trem. Joan Fontaine conheceu Cary Grant no trem em Suspeita, e o mesmo Grant mais tarde daria sua mão para suspender Eve Marie Saint na charmosa cabine de um vagão dormitório em Intriga Internacional numa fusão interessantíssima entre o monte Rushmore, onde eram perseguidos, e o beliche.Na comédia romântica de Joshua Logan, Picnic (Férias de Amor) , o vagabundo William Holden desce do trem para enfeitiçar o coração da Kim Novak.Alguém acha possível que Doutor Jivago do magnífico David Lean alcançasse a magnitude estética sem aquele trem cruzando a Sibéria? A experiência dos personagens vivendo na promiscuidade daquele vagão de carga transformado em dormitório coletivo é claustrofóbica. Lá fora apenas um imenso cenário branco e gelado em que o único elemento de cor é o trem rasgando seu caminho na neve espessa. A plasticidade da cena é arrebatadora.Em Desencanto de David Lean, o trem e a estação são personagens tão indispensáveis quanto os interpretados por Trevor Howard e Celia Johnson. Aqui, o trem envolvido na fumaça estabelece o compasso do tempo, da dúvida e da culpa com uma força dramática poucas vezes vista no cinema.Em Butch Cassidy a cavalaria que vai perseguir incansavelmente os dois bandidos mais simpáticos do velho oeste desembarca de uma forma inesperada de um vagão de trem, um daqueles que Butch e Sundance assaltavam com regularidade.John Ford caprichou na imagem plástica do trem que traz Sean Thornton (John Wayne) de volta à sua Irlanda natal, uma Irlanda calma, bucólica e pueril e é nesta mesma estação que o grande Ford começa a desenvolver seus deliciosos personagens logo no inicio do inesquecível Depois do Vendaval. Bem mais adiante no filme, num ataque de fúria com a tinhosa Maureen O’Hara ele a procura, abrindo todas as portas do trem numa cena deliciosa de ritmo e ação que só foi possível diante da fotogenia esplêndida do comboio.
Em High Noon, um dos westerns mais importantes do cinema, o trem que vai chegar com o vingador é o elemento que pontua toda a história do filme. Gary Cooper no seu isolamento vai ter que enfrentar o bando que, libertado da prisão, volta para vingá-lo e tem hora marcada para chegar. Quando o zunido do trem nos trilhos já pode ser ouvido na cidade, a identificação de que a morte está chegando é perfeita. Em Gandhi, é no trem que o grande pacificador indiano se vê vítima do preconceito da colonização britânica e começa a idealizar seu papel na história daquele povo , assim como também é o trem que marca as duas chegadas do senador Stoddard (James Stewart) à cidade de Shinbone, uma primeira vez como ainda um jovem advogado disposto a estabelecer a lei em terra ameaçada por facínoras, e uma segunda, muitos anos depois, já como senador para o enterro de um grande amigo. Estamos falando de O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance), que assim como dezenas de westerns, utilizou o trem com quase a mesma intensidade que bois e cavalos. Nos filmes de guerra, os trens também são elementos fortíssimos em cena, principalmente aqueles que se relacionam com a segunda grande guerra e o holocausto, onde os trens levavam carga humana para os campos de concentração. “O Trem“ de John Frankheimer é passado inteiramente no veículo em movimento num interessante enredo sobre sabotagem aos nazistas que roubavam obras-primas dos países ocupados. Foi usando o trem que o cinema brasileiro deu um salto qualitativo bem grande nos anos 60 com o excelente O Assalto ao Trem Pagador de Roberto Farias. Sidney Lumet não resistiu à tentação de fazer a melhor adaptação de Agatha Christie para a telona com o seu “Assassinato no Oriente Expresso”. O cinema á a arte do movimento, do impacto visual, e por esta razão, o trem com suas pesadas engrenagens ( como os carretéis manuseados pelos projecionistas) que deslizam nos trilhos, seu som, sua trajetória, tem uma magia cinematográfica intensa e em alguns filmes deveria ser reconhecido como o grande elemento em cena. E , quem sabe, levar um Oscar para casa.