ELLE
- Luciano Bastos, DP
- Dec 20, 2016
- 2 min read

Há olhos que conseguem enxergar a vida além do pesadelo e acabam flertando com o lado do avesso de suas existências. ELLE é um filme que você vai saboreando mesmo depois que deixa a sala escura do cinema. Permite que você vá descobrindo as camadas e fazendo algumas descobertas adicionais. Não dá para ficar indiferente ao que se passa na tela em pouco mais de duas horas. A comédia humana aqui apresentada não poupa absolutamente nada. Num foro de psiquiatria o filme poderia fornecer um vasto material de análise. A história da proprietária e executiva de uma produtora de games, traumatizada na infância por um pai criminoso que cumpre prisão perpétua, separada de um marido que ainda queria ter do lado, mãe de um filho trapalhão e filha de uma velha senhora que contrata garotos de programa não é nem o começo da galeria de personagens muito bem trabalhados neste último filme do holandês Paul Verhoeven. Na verdade, os fortes elementos de violência e sexualidade dos jogos acabam replicando na vida da protagonista e de seus colegas.
O filme é todo centrado na figura central da mulher madura defendida por Isabelle Huppert. Num universo de obsessões, taras, inquietações e solidão, o filme nos traça um mosaico de uma humanidade que, ao descobrir uma liberdade comportamental acaba se embriagando com ela. É propositalmente e exageradamente sinfônico no sentido de evitar que exista dentro da galeria humana aqui exposta alguém dentro dos padrões ditos convencionais.
Esse painel de cores extremamente fortes, além de revelar um caráter claramente misantropo do autor/realizador, constrói caricaturas de elementos improváveis na vida real. A harmonia dos personagens reside nas suas transgressões. Não é imaginável, pelo menos nessa escala, alguém se submeter à tragédia com tanta passividade e obstinação e um toque de prazer. Tanto a dor física, a humilhação e o medo são vividos pelos personagens de forma quase natural.
Michelle, a personagem de Huppert, é uma mulher de meia idade que odeia o pai, despreza a mãe e gosta de fazer sexo para construir o lado pervertido de sua persona. As questões vividas por ela durante toda a vida lhe moldaram uma personalidade gélida. A trama é tão interessante que pouco mais de uma dúzia de personagens que desfilam no longa possuem histórias que se cruzam, delitos que se esbarram, segredos que se entrelaçam. Verhoeven, experiente em filmes de ação com muita computação gráfica (Robocop, Vingador do futuro), mostra habilidade e sensibilidade ao registrar um duro retrato dos mais inconfessáveis segredos da alma humana. Em “Instinto selvagem”, filmado há quase 25 anos, Verhoesen já mostrava, embora de forma mais comercial e menos densa, esse viés de flertar com instintos mais primitivos. Trilha sonora perfeita ajuda a compor o conjunto.
Isabelle Hupert, em sua performance minimalista, revelando emoções contidas, dá vontade de ver mais de Isabelle Huppert (de rever por exemplo “A professora de piano” e “Madame Bovary”), ou esperar ansioso o lançamento (que será breve) de “ O que está por vir”.
Vê-la com quase 60 anos, ainda bonita e esbanjando talento, é um prazer. Talvez ELLE não seja o melhor filme do ano, mas é um dos melhores. Como a minha lista foi divulgada antes de assisti-lo, obviamente não foi incluído. Mas estaria lá, certamente.