O minuto perdido
- Eduardo Simbalista, DP
- Oct 4, 2016
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Tive um sonho ou pesadelo premonitório em que tudo se apagava num minuto incerto.
Explico melhor: o minuto fora vivido, registrara todas as certezas, todas as experiências e todas as contingências e, mais tarde, como se deus decidisse acertar o relógio, fizera saltar o ponteiro um pouco adiante, decretando, por descuido divino, que aquele minuto jamais existira.
Aquele minuto ficou no vazio e, com ele, toda glória, toda conquista, toda dor, toda alegria daquele momento inexistente.
Não houve cabeças cortadas. Crimes foram prescritos sem punição, pecados perdoados, por falta de prova ou convicção. As trevas, as confusões e as doenças tiveram o minuto de comiseração.
Negócios, barganhas, guerras, bombas de Hiroshima, discursos, gols de mão, facadas, traições, tudo se perdeu naquele minuto oco de opiáceos e santos chás. Estava em paz entre os nefilins, raça de gigantes, homens formidáveis como Gulliver, a expor a minha pequenez.
Aquele recado? Aquele chamado? Não recebido. Aquele telefonema? Não dado. A mão estendida de deus? Recolhida. Aquela declaração de amor? Perdida.
Senti-me como no tempo em que os jornais não circulavam às segundas-feiras e minha única preocupação metafísica era a de prover alguma carne para o feijão e alguma manteiga para o pão.
Lembro-me de ter, nesse minuto que não existiu, cortado o rosto ao aparar a barba. Ao bater com o rosto no espelho, não me reconheci. O sangue escorreu, prenunciando feia cicatriz. Na manhã seguinte, nada, nenhuma ferida, nenhuma cicatriz. O espelho intacto.
Ficara, num entanto, uma leve dor, sinal de que não estivera louco: algo realmente acontecera naquele minuto mágico. A dor ficara para atestar a loucura da minha sanidade. Quando o bispo trouxe afinal paz à minha alma, não sentia nem fome nem sede, apenas frio.
Não sei o que existe entre os sonhos sonhados, no limiar dos fatos passados e das premonições futuras, e os pesadelos que são projeções repetidas de fantasias e fantasmas, sombras inquietas que turvam o olhar com alucinações.
O que fiquei sabendo mais tarde é que aquele minuto mágico realmente existira, com feridas, alegrias, dores e cicatrizes; o que não ficara registrado fora esse outro minuto do qual restou apenas a lembrança de que nada acontecera.
Talvez haja um segundo estágio da vida, no êxtase das drogas e da alucinação, quando, como no absurdo de Ionesco, se assume plenamente o monstro de não ser e voltar a ser.