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Patrulhas

  • Jason Prado, DP
  • Jul 30, 2016
  • 4 min read

Cada dia fico mais impressionado com o rumo das coisas no Brasil. Abolimos o talvez. Tudo é absoluto. Todo mundo tem opinião formada. Sobre tudo.

Nesse território lamacento, tudo serve a todos. Qualquer argumento pode ser usado a favor ou contra qualquer idéia. Esse é um campo fértil para os estigmas, a patrulha, que já se desprendeu das ideologias e se presta a qualquer papel escuso - justifica qualquer interesse.

Embora as pesquisas demonstrem o contrário, somos um país de sábios. Doutores em silogismo, falácias e outras formas de pensamento primitivo.

Hoje cedo assisti ao linchamento de um médico que criticou o analfabetismo de uma paciente.

A questão foi politizada, com várias postagens aludindo às questões de classe. Outras tantas rotulando dominados e dominantes pelo espectro político-partidário… Estamos reduzidos a um país de coxinhas e mortadelas.Afora o fato extremamente positivo de que as pessoas estão opinando e se posicionando (inclusive pela escrita), as discussões logo se inflamam e ganham torcida, como se tudo não passasse de um grande espetáculo: sem qualquer reflexão cuidadosa.

Perdi a conta do número de vezes que li mensagens com os absurdos escritos nas provas do Enem. Algumas se tronaram clássicas, como a do “Vale do Paraíba”. Mas nunca li uma discussão sobre a classe social dos alunos que as escreveram, nem dos professores que as corrigiram e distribuíram pela internet.

Mas o médico de Serra Negra, em São Paulo, coitado, meteu a cara na rede…

Estamos em meio a uma discussão sobre doutrinação nas escolas, inclusive com projetos de Lei e datas marcadas para protestos.

Acho que uma coisa tem a ver com a outra, e vou fazer uma pequena digressão antes de amarrar essas pontas.

Como a maioria dos viventes, nasci na segunda metade do século XX, mas sou de uma época em que nos expressávamos com mais naturalidade. Éramos muito preconceituosos, é verdade. Tratávamos os imigrantes como inferiores, apelidávamos as pessoas por suas características físicas ou intelectuais e mesmo os mais pobres encontravam alguém pior para tripudiar.

Exatamente como todos os povos do mundo, aprendemos com nossos antepassados. Não importa onde eles tenham nascido - China, África ou América pré-colombiana.

Afinal, a civilização foi construída pelo terror aos bárbaros e às diferenças, e não se pode nem dizer que foi à luz das religiões, porque ali não há luz, mas cegueira.

Não sei de vocês, mas cresci rindo do Gordo e o Magro, de Tom e Jerry, do Pernalonga e do ultra perverso Patolino, cujo antagonista era um Gago…

Não se discutia a intencionalidade desses personagens nem a de seus autores. Muito mais por ingenuidade (como a maioria) do que por espírito crítico (como os mais sagazes), seus autores se apropriavam de nossas crenças e emoções, fosse para nos fazer chorar de um despossuído Carlitos, ou gargalhar de um azarado crônico, como o gato Tom, o Coiote do Papa-Léguas ou os Três Patetas.

O nosso querido Mussum construiu sua personagem genial e carismática sobre os estereótipos, sem que jamais fosse questionado por suas intenções.

Tardiamente fui compreender um pouco as complexas estruturas em que se baseiam essas construções. Embora tenha feito o ensino médio focado nas humanidades, foi na faculdade que me deparei com as primeiras análises semiológicas dessas narrativas, podendo ler e dialogar com os grandes mestres do tema, através de seus textos e idéias. Foi quase doloroso saber…

Por que não tive essa dimensão desde o sempre?

Porque a Educação brasileira tem problemas complexos, que vão desde o magistério (formação e valorização, por exemplo), até a grade curricular, eficiência, evasão, dicotomia entre público e privado…

Mas nenhum deles é mais grave e emergencial do que separar a escola que temos da escola que deveríamos ter.

A sociedade brasileira se constituiu e acomodou através dos privilégios, e usa a escola como trincheira entre o ter e o não ter. A forma como escolhemos a escola de nossos filhos reflete isso pateticamente. Em tese, escolhemos a não escola; aquela que se destaca de todas as outras e vai colocar nossa prole no topo da cadeia alimentar.

Não há uma discussão sobre doutrinação política nessas escolas.

Como não houve quando resolveram tornar obrigatório o ensino religioso nas escolas públicas. Aliás, grande parte das escolas privadas são religiosas, nascidas dentro das mesmas religiões neo judaicas que dividem o céu e a terra em classes sociais, justificando monarquias.

Quando reincluíram filosofia na grade escolar, ninguém protestou contra o fato de que os professores de história ocuparam aquelas vagas, lecionando a história do pensamento, no lugar do pretendido pensamento. A escola da maioria não é a escola destinada à libertação

Não está se debatendo a construção do pensamento crítico dentro das escolas brasileiras. Os movimentos estudantis e de professores não propõem nada além das surradas greves por salários, palavras de ordem desgastadas pelo tempo e ocupações.

Governantes e a sociedade civil só falam em reintegração de posse e volta às aulas…

Me sinto aprisionado em um desenho animado, com um personagem perverso dominando a cena, e cujo desfecho nem é mais previsível, mas esperado, assimilado e absorvido como parte inexorável da minha existência.

Como a maioria dos simplórios, sou obrigado a concluir que às classes dominantes - assim como às classes intelectuais, que têm uma espécie de aderência inata ao poder - o que interessa é manter as massas onde estão: aprisionadas ao espetáculo. Com suas Olas sincronizadas entre levanta e abaixa, enquanto as gentes sérias cuidam do que é importante.

Continuamos estigmatizando os diferentes. Apenas trocamos o turno da guarda.


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